Impasses e dilemas da democratização da cultura e do cinema em uma perspectiva genealógica
A inspiração para a presente investigação teve início com uma profunda inquietação em relação aos mecanismos de democratização da arte, em geral, e do cinema, em particular. Assim, ao longo da presente investigação, investigação que é tributária das reflexões metodológicas de Michel Foucault, pretende-se mostrar que as comunidades de espectadores de cinema da atualidade, dentro e fora do Brasil, foram montadas a partir de conceitos cuja proveniência remonta claramente às esferas sociais não estéticas, nomeadamente à medicina e ao Direito do século XIX. Por exemplo, uma série de pedagogias do olhar que se estabeleceram na contemporaneidade não se cansa de defender a centralidade da adoção de modelos de julgamentos por parte dos espectadores como motor do advento de um cinema dito mais democrático, mais artístico, entre outras promessas de melhoramento, sem levar em conta os objetivos estratégicos que o o ato de julgar transporta no seu interior. Tendo isso em mente, o presente estudo dedicar-se-á ao trabalho de trazer à tona o modo pelo qual o Direito e a medicina do século XIX funcionaram e seguem funcionando, ainda que inconscientemente, como matriz privilegiada para a inteligibilização da experiência cinematográfica. Ou, dito de outro modo, a investigação que ora se apresenta, do ponto de vista de seu plano argumentativo, se propõe a empreender uma genealogia do processo de constituição da cognição espectadora relativa ao cinema, mostrando que a cognição internalizada pelos espectadores de cinema é uma cognição que depende da análise de esferas não cinematográficas. Ora, ao fim e ao cabo da investigação, pretendemos mostrar que a democratização do julgamento sobre as obras cinematográficas não representou um progresso democrático, mas sim uma forma de espraiar um tipo de reflexividade cuja função histórica foi a de rarefazer a democratização do ato de criar narrativas fílmicas. Portanto, não enquadrar a história do cinema no interior de nossas coordenadas atuais de cognição espectadora é um modo de tentar pensar uma agenda para o cinema que não faça do julgamento o teto último do nosso imaginário político, talvez uma das tarefas políticas mais urgentes para a reelaboração de uma nova ética diante do cinema.